Também há fome no Reino Unido, parte devido aos cortes nos apoios da segurança social,
A alça que o Tâmisa desenha no centro de Londres, convivem, lado a lado, as duas narrativas sobre a economia britânica que se confrontam nestas eleições: Canary Wharf e Tower Hamlets. O luxo e a fome. A pujança de uma economia que cria empregos e deixa para trás a recessão a um ritmo de crescimento de 2,8% ao ano, e sua face miserável. A caprichosa lógica do urbanismo da capital quis que estes arranha-céus se erguessem precisamente em Tower Hamlets, o bairro com mais crianças que passam fome no país e onde mais de metade delas vive abaixo da linha de pobreza.
São 8h. Executivos bem vestidos circulam pelas calçadas de Canary Wharf, o centro financeiro que superou a City como o maior empregador do setor bancário na Europa. Os trabalhadores destes arranha-céus ganham uma média de 95.000 libras anuais. Os que vivem abaixo deles sobrevivem com 11.400 libras anuais. Não é fácil manter uma família em Londres com este valor.
À sombra dos arranha-céus, entre as casas de moradia social, os voluntários do banco alimentar de Tower Hamlets organizam a comida em caixas. Este centro abriu as portas em 2010 para atender o que sua diretora, Amy Kimbangi, chama de “fome escondida”. Naquela época, David Cameron chegava ao número 10 de Downing Street. “Desde 2010, a procura por este serviço aumenta a cada ano”, afirma Kimbangi. “Passamos de alimentar quatro ou cinco famílias por semana a 35 famílias por semana. São pessoas que pagam os seus alugueres, têm emprego, mas não são capazes de colocar comida nas suas mesas. Londres é uma cidade extraordinariamente cara e viver com o salário mínimo aqui é praticamente impossível”.
A economia britânica cresceu 2,8% em 2014, mais do que de qualquer outro país do G7. A taxa de desemprego está abaixo de 6%.
Entre os 15 membros iniciais da União Europeia, apenas Portugal e Grécia têm salários médios mais baixos que o Reino Unido.
O Governo de Cameron adotou como prioridade a redução do déficit (5,4% do PIB em 2014) à base de cortes nos gastos públicos.
Os bancos alimentares de Trussell Trust (445 espalhados por todo o país, em comparação com 29 em 2009) distribuíram 1.084.604 pacotes de ajuda alimentar nos últimos 12 meses – 19% a mais do que no ano passado e 27 vezes mais do que há cinco anos.
No Reino Unido, 2,3 milhões de crianças estão classificadas na pobreza relativa, vivendo em famílias cuja renda são mais baixas do que 60% da média nacional.
O banco de alimentos de Tower Hamlets pertence ao Trussell Trust, o maior conglomerado de distribuição de comidas de emergência do Reino Unido. Em 2009, o grupo tinha apenas 29 bancos alimentares semelhantes. Hoje, reúne 445. Nesta semana, o Trust divulgou os dados atualizados da sua atividade: nos últimos 12 meses, distribuiu 1,1 milhão de lotes de comida, cada um suficiente para alimentar uma família durante três dias. São quase 200.000 a mais do que no ano passado – e 27 vezes a mais do que há cinco anos.
A esses números é necessário somar os de outras centenas de bancos de alimentos independentes que operam em todo o país. Grupos de médicos também reportam um autêntico problema de saúde pública.
São os profissionais de saúde e os assistentes sociais quem identifica as pessoas necessitadas e entrega a elas um vale para retirarem comida dos bancos alimentares. Cerca de 44% dos usuários dos bancos do Trussell Trust recorrem a eles por causa dos problemas com as ajudas de custo do governo. As políticas de austeridade atingiram a segurança social britânica, um dos pilares do Estado de bem-estar social construído pelos Governos trabalhistas do pós-guerra. Os benefícios chegaram a funcionar como um complemento ao orçamento das famílias, o que permitia às empresas manter sua produtividade pagando salários médios que estão entre os mais baixos de toda a Europa. Os cortes no sistema quebraram esse delicado equilíbrio.
Isso foi o que concluiu um estudo de novembro do ano passado, encomendado pela Igreja Anglicana, o Trussell Trust e a Oxfam, e que relacionou diretamente os cortes nos benefícios sociais ao aumento do uso dos bancos alimentares. O relatório, o mais abrangente já realizado até então, solicitava mudanças urgentes no sistema “complicado, remoto e por vezes intimidador”, para evitar que mais pessoas caíssem na pobreza. O Governo desqualificou o estudo ao considerá-lo “inconclusivo”.
A manhã de Matti Letsie começa na porta dos fundos de um hipermercado. É sua rotina desde que, no ano passado, abriu o banco de alimentos independente Connect 25, em Newcastle, no norte do país. Aqui ela recolhe as provisões doadas pelo estabelecimento. “É comida que, de outra maneira, terminaria no lixo”, explica.
Com sua carrinha carregada, ela conduz até o local que serve como armazém, ao lado da igreja King’s Castle. “Comecei a trabalhar na assistência social em 2008”, conta. “O uso do banco de alimentos naquela época era algo mínimo, mas agora cada vez mais gente recorre a eles. Acredito que, assim como o Governo tenta acertar a dívida e levar o país a uma boa situação financeira, ele também deve procurar um equilíbrio. O governo tem que ver de que forma as coisas que faz afetam o cidadão comum. Muitas pessoas vivem muito abaixo da dignidade humana”.